Vida em Verso e Prosa

Tenho escrito muitas coisas, algumas impublicáveis. Estas, são as mais interessantes.

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25 agosto 2014

Viagem Naval

O barco partiu para uma viagem incógnita. A princípio parecia um passeio, ir ali e logo voltar. Mas o tempo foi passando e a terra sumindo de vista. Incrível a sensação de abandono quando não se vê a costa. O homem é um animal terrestre e precisa de chão para manter a referência. As pessoas se matam para garantir um espaço sobre a terra, seja qual for o seu tamanho. Tamanho da terra ou tamanho da pessoa. E o mar nos tira essa perspectiva. Seja grande ou pequeno, um navio não passa de um meio de transporte. Pode-se embarcar num transatlântico para um cruzeiro, nunca alguém poderá sentir-se em casa. Acho que nem os marinheiros têm essa sensação de lar. Talvez aqueles que vivem nas casas-barcos de Amsterdã sintam algo assim, mas devem mesmo é pensar que precisam de um lugar firme para morar. O que pode sentir alguém que vive ao sabor da maré? Claro que, figurativamente, todos vivemos ao sabor da maré, mas isso é só uma metáfora para se referir à incerteza da vida. Todos buscamos segurança, todos buscamos fixar nossa morada sobre a rocha. Outra metáfora.

Quanto mais o barco se afastava, mais a sensação de vazio se revelava, causando revoluções nos pensamentos e no estômago. Enjoo e vômito até parecer que a flora estomacal toda havia já saído pela boca. Flora... Outra referência a solo. Jardins, flores, plantas... Do convés nada se vê. Você fica horas ali esperando ver um golfinho, uma baleia, um peixe-espada e nada. Onde estão aqueles bichos que a gente vê nos filmes? Nenhum maldito veio presenciar a minha estúpida convulsão gástrica. Não estão nem aí para mim. Devem estar lá no fundo, festejando a alegria de não precisar respirar o oxigênio impuro que compartilhamos nas grandes cidades. Por que viriam à tona? Para ver minha cara pálida? Eu também não viria se fosse um peixe. Ficaria bem longe dos homens e seus anzóis. Que mundo fantástico deve existir nas profundezas. Que diversidade de espécies, todas flutuando e convivendo harmonicamente. É um mundo em três dimensões, ao contrário de nosso mundo terrestre, onde vivemos grudados ao solo. Lá apenas as plantas e corais estão ao rés do chão. Os outros seres vivos voam até onde a água alcança. Que bom seria se tivéssemos essa capacidade tridimensional de ocupar todos os espaços entre a terra e o céu. Pena que nossas limitações nos mantêm no chão, restritos pela incapacidade de voar sem máquinas. Mesmo elas precisam evoluir muito ainda. No mar é diferente, cada ser tem seu próprio sistema de navegação e a gravidade não os prende.

A noite chegou e nada de terra à vista. A noite torna a cena mais assustadora. O ronco dos motores se potencializa em nossos ouvidos. Sentimos até mesmo a sua vibração. Depois que passa a maresia e nosso cerebelo assimila o balanço, passamos a prestar atenção em outras coisas. Mas a cena continua a inspirar pânico. A abóbada celeste que durante o dia revelava a imensidão do planeta agora revela a insignificância dele no universo. Longe da costa se pode ver as estrelas e o rastro da via láctea. As constelações desnudam minha completa ignorância em astrologia. Tirando o Cruzeiro do Sul e as Três Marias não consigo identificar nenhuma outra. Como os antigos conseguiam ver centauros, leões, caranguejos, aquários e peixes? Eu vejo é nada. Só consigo pensar no nada que somos, um dos menores planetas de um dos menores sistemas solares de uma pequena galáxia num canto do universo. E tem gente que se acha alguma coisa.

Falei dos motores. É assustador pensar em nossa dependência deles. Se pararem de funcionar não passaremos de um ponto no oceano. Até a iluminação, a água, a comida, o gelo dependem dos geradores funcionando. Se pararem, em poucas horas não teremos nem os rádios para pedir socorro. Dizem que os navios de guerra são providos de energia nuclear que não se esgota, ou que leva centenas de anos para acabar. Que bom se tivéssemos um gerador desses. Que ridícula essa ignorância de embarcar numa viagem sem saber o destino ou a duração. Eu quero sair daqui, alguém me arranje um helicóptero.

A manhã chegou mas o sol não veio. Pode haver algo mais ameaçador que uma nuvem negra no horizonte? Pode. A tempestade confirmada. O navio balançando e as ondas gigantes brincando com ele como se fosse de papel. Os alto-falantes alertando para que ninguém fique no convés. O uso obrigatório dos coletes salvavidas. E não adianta chamar por minha mãe porque tem dezenas de velhinhas como ela se agarrando e rezando, jurando nunca mais se aproximar de um cais. Como são frágeis os problemas que eu pensava grandes. Ninguém, nem o marujo mais experiente se sente seguro numa tempestade marítima. Nenhum ser humano pode dizer que haverá um depois. Aqueles que tem fé aproveitam para encomendar suas almas. Os que não tem... Nunca parei para pensar o que passa por suas cabeças. O fato é que todos enxergam o fim de seus dias numa situação como essa.

Enfim, a bonança. Tudo parece lindo, a vida é bela. Sentimo-nos como os marinheiros mais experientes dos sete mares. A viagem termina e postamos as fotos nas redes sociais. Recomendamos a aventura. As adversidades nos serviram de tempero para justificar o afastamento da rotina. Quem sabe da próxima vez optemos por outro meio de transporte, outro destino. Já dizia uma canção: "viajar é preciso, viver não é preciso."


Assim é a vida. Partimos sem saber o destino, sentimos medo, ficamos doentes, queremos fugir. Dependemos de pessoas e de "motores", somos reféns das intempéries. Ficamos experientes sem saber que continuamos absolutamente dependentes de fatores sobre os quais não temos qualquer domínio.

03 agosto 2014

Este é o nº 31, lançado em 31/07/2014