Vida em Verso e Prosa

Tenho escrito muitas coisas, algumas impublicáveis. Estas, são as mais interessantes.

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30 julho 2012

Noticiário e Falta de Inspiração



Noticiário e Falta de Inspiração

"No Haiti, passado um ano do terremoto, apenas cinco por cento dos escombros foram retirados."

A televisão anunciava a ajuda internacional para dar um pouco de alento ao sofrido povo do pequeno país da América Central. De sua parte, não conseguia encontrar inspiração. Encontraria o editor no dia seguinte e sabia que deveria falar sobre o novo livro. O contrato de dois anos estava se esgotando e a editora tinha motivos para estar preocupada. O primeiro livro fora um sucesso, o que lhe garantira um bom valor inicial pelos direitos autorais e mais uma mesada, por vinte e quatro meses, a fim de que pudesse escrever uma nova obra sem se preocupar com o sustento e até certo luxo.


"No Rio de Janeiro desabou um prédio, matando muitas pessoas. Lá, também, um pedreiro oferecia para venda uma casa que pretendia construir no lugar onde acabara de desabar outra. É seguro, garantiu, lá embaixo a terra é bem firme."

Quando firmou o contrato, pensou em entregar o novo livro em um ano ou menos. Assim poderia receber nova bolada e dobrar o valor da mesada. Isso também garantiria o seu nome na mídia, pois no último ano, apesar do respeito que ainda lhe dedicavam, não fora convidado para muitos programas de rádio ou televisão. Esses eventos, além de render alguns cachês, alavancavam as vendas, agradando a editora e as livrarias.


"Em São Paulo um ladrão roubou os cabos de iluminação de um via pública em plena luz do dia. Nem se importou de ser filmado. Com uma picareta quebrou a mureta que separa os carros da passarela de pedestres, para facilitar a remoção. Ao se retirar do local ainda parou para dizer, do alto de sua ética: Sou ladrão, mas não roubo pai de família; eu roubo cabos."

A criatividade não o ajudou, seus planos não deram certo. O novo livro não surgiu no prazo previsto e, agora, aproximava-se a data-limite para a apresentação da obra. Várias vezes o editor já lhe havia pedido uma sinopse, um release, qualquer coisa que pudesse ser lançada nos meios de comunicação para criar no mercado uma expectativa. Tudo correu muito bem até que as vendas reduzissem naturalmente. Nos primeiros meses o livro projetou o nome da editora e rendeu-lhe muito dinheiro, fazendo compensar o adiantamento e justificando a mesada, gerando lucro em proporção geométrica. Mas dinheiro chama dinheiro. A editora aumentara suas despesas fixas em razão da ampliação dos pedidos e não estava disposta a se retrair agora. Era imperativo que lançasse um novo best-seller.

"As enchentes assolam o país. Em poucas horas choveu o que se esperava para todo o mês."

- Amanhã o editor vai me encher o saco - disse a si mesmo.

"Uma menina foi retirada viva dos escombros."

- O que direi a ele?

"Um rapaz que foi resgatado com vida ainda teve forças para ajudar os bombeiros a encontrar uma criança soterrada, infelizmente já sem vida."

Era muito difícil conviver com a culpa. Não havia parado durante aqueles quase dois anos. Tinha muitas ideias quando assinou o contrato e, logo, passou a dedicar seus dias e suas noites a botar no papel - ou melhor, na memória do computador - os casos e personagens que brotavam como água da fonte, como brotavam as histórias da cabeça de Nietzsche. Mas a inspiração não foi perene. Logo seus pensamentos começaram a secar e os livros incompletos foram sendo deixados de lado. Uma a uma, as histórias foram sendo abandonadas, ou pior, repudiadas. Por isso não tinha sequer uma sinopse ou um plano de obra para apresentar ao editor. Poderia apresentar qualquer coisa, mas desprezava qualquer que fosse a história descartada. Sentia que, se apresentasse, estaria se prostituindo intelectualmente, como se vendesse a sua arte para contar uma história na qual nem ele acreditava.

"No Haiti, dez mil pessoas vivem em tendas. Até os repórteres tiveram que usar colete a prova de balas para entrar no acampamento, que não tem água nem saneamento básico. O cólera se prolifera."
O sol já nascia quando finalmente dormiu. Logo foi despertado pelo telefone.
- Alô Wilson, você ainda está dormindo?
- Que horas são?
- Sao dez e meia. Você ficou de estar aqui às nove - disse o editor, em tom de cobrança.
- Tive uma noite horrível.
- Não pense que a minha foi boa. Mas eu estava aqui às oito.
- Cara, desculpe. Acho que o meu despertador falhou.
- Desculparei se você chegar aqui em meia hora, com o original de um novo best-seller.
- Pois é, precisamos conversar sobre isso.
- Não, não precisamos, Wilson. Já conversamos muito. Agora eu quero o livro. Tem muito autor talentoso querendo publicar com a gente.
- Imagino, depois que eu projetei o nome da editora.
- Não nego, mas ninguém vive das glórias do passado. Seu livro foi um marco, mas precisamos lançar outros.
- Então peça para esses autores talentosos que estão batendo à sua porta.
- Calma aí, garotão. Sou eu, o Dalton, lembra? Não precisa se irritar. Só estou pedindo o seu novo livro.
- É que você está me pressionando muito.
- Estou, mas você não faz ideia da pressão que eu recebo aqui todos os dias. Não é fácil segurar as cobranças por esse livro.
- E por que não cobram dos outros autores?
- Cobramos, sim. Mas o seu novo livro está sendo aguardado pelo mercado. É lançar e faturar.
- Desculpe, Dalton, eu me exaltei porque também estou ansioso para entregar esse livro, mas a história não vem.
- Era o que eu temia, que você fosse daqueles escritores de um livro só.
- Não, eu sinto que posso escrever muito mais. Só peço um pouco de paciência. 
- Escute, Wilson. Faltam só três semanas para o fim do seu contrato. Já pensou no vai fazer se essa inspiração não vier?
- Não - rendeu-se -, não faço a menor ideia.
- Meu financeiro vai me matar, mas acredito no seu talento. Você está precisando mudar de ares. Prepare as malas, estou mandando você para uma semana em Curitiba.
- E o que é que tem em Curitiba?
- É uma linda cidade, mas espero que tenha a inspiração que você precisa.
- É, vamos ver.
- Anime-se, rapaz, é sua última chance. Vejo você na semana que vem. Se esse livro não sair, nós dois vamos juntos procurar emprego.
- Mas você é o dono da editora.
- Sou, mas, perdulário desse jeito, em uma semana estarei falido.


Jocelino Freitas
Enviado por Jocelino Freitas em 12/01/2011
Reeditado em 26/04/2011
Código do texto: T2724814