Vida em Verso e Prosa

Tenho escrito muitas coisas, algumas impublicáveis. Estas, são as mais interessantes.

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30 julho 2012

A Vingança


A Vingança

João estranhou o homem na esquina de sua casa. Estava parado como se esperasse por ele. Ficou olhando, esboçando falar algo, mas nada disse. Apenas acompanhou com os olhos a passagem de João, que não tinha medo de ninguém. Se o sujeito quisesse assaltá-lo, reagiria. O rapaz parecia estar armado, mas não levaria o pouco dinheiro que tinha no bolso, nem seu relógio ou aliança.

Abriu o portão e ficou olhando para a esquina. O homem começou a caminhar devagar em sua direção. João pensou, por um instante, que fora imprudente. Deveria ter entrado e voltado com seu revólver. Agora não tinha muita opção, era ficar ou correr para dentro de casa. Ficou, pois recuar não era do seu feitio.

O homem parou por um instante diante dele e o encarou. João olhou em seus olhos e tremeu com a lembrança que lhe veio à mente. Uma memória que lhe causava muita dor e que tirara seu sono por muitos anos. Mais de vinte anos se haviam passado e aquele pensamento o assombrou novamente ao ver o olhar, que o fez lembrar-se do antigo amigo, da morte que recaía sobre sua consciência.

João se lembrou do dia em que, a milhares de quilômetros dali, entrou no bar do Zé. Os amigos estavam com ele, não o largavam desde que Genésio prometera matá-lo. Mas Genésio não era homem pra isso e ofereceu um prêmio de cem mil cruzeiros a alguém para matar João. A oferta foi feita depois que Genésio se meteu com João e saiu humilhado. Era uma obsessão, um ciúme sem motivo. Difícil entender.

Quando a conversa se espalhou, os amigos não deixaram mais que João andasse sozinho, mesmo com a arma que passou a portar. Pediram conhaque e o Zé colocou a garrafa na mesa, como estava acostumado. Sabia que a garrafa na mesa levava os clientes a consumir mais do que se tivessem que pedir de dose em dose. Depois era só ver a medida e cobrar pelo consumo. O Zé tinha tanta experiência que sabia, só de bater os olhos, quantas doses haviam sido consumidas. Foi o erro que lhe custou a vida.

Resolveram comprar uma carne para acompanhar o conhaque. O bar do Zé não servia carne e era normal que os clientes comprassem no açougue do Manoel, que ficava ao lado. João foi buscar a carne, que o Manoel costumava fritar em pedaços para servir aos clientes compartilhados com o amigo Zé, que servia a bebida. Mas naquele dia não havia mais carne, fora toda vendida. Agora era preciso matar mais um boi e carnear o bicho. O povo estava acostumado com isso na pequena localidade. João voltou ao bar e os amigos resolveram ir cada um para sua própria casa, comer os angus que suas mulheres deviam ter preparado para as crianças.

- Não vamos ficar, Zé. O Manoel não tem mais carne. O jeito é ir pra casa comer farinha.
- Tudo bem. Voltem amanhã, que deve ter carne no Manoel. Ele não deixa ficar muito tempo sem matar um boi.
- Quanto é que devemos do conhaque?
- Deixa eu ver a garrafa... São 500 cruzeiros.
- Tá louco, Zé? Esse é o preço de uma garrafa inteira!
- Mas é o que vocês vão pagar hoje.
- Ah não. Não tomamos nem metade da garrafa.
- Eu já disse que são 500 cruzeiros.
- Toma 300 que já tá bom.

João colocou o dinheiro sobre o balcão e quase foi atingido pelo golpe do facão que o Zé sacara de surpresa.

- Que é isso Zé? Tá maluco?
- Você vai pagar o preço certo, João.
- Mas esse preço não é certo.
- Bem que o Genésio disse que você não vale nada.

A menção do nome do inimigo atiçou os pensamentos de João. Talvez o amigo Zé fosse o homem contratado por Genésio para matá-lo. Quem sabe a amizade valesse menos que os cem mil cruzeiros do prêmio por sua morte. João recuou, enquanto os amigos tentavam conter o Zé, que pulava por sobre o balcão. Não conseguiram, o Zé se desvencilhou deles e avançou em direção a João, que já estava fora do estabelecimento.

- Não pise aqui fora, Zé. Senão você morre.
- Você não é homem pra me matar, seu filho de uma égua.

João era homem, sim. O Zé caiu morto ali mesmo, com seu facão na mão, deixando a viúva e seus filhos pequenos, desgraçando as suas vidas e também a do João.

Todos esses pensamentos vieram à cabeça de João quando viu os olhos do amigo Zé no olhar do homem parado à sua frente. Vinte anos se haviam passado. A justiça o absolvera, legítima defesa, mas nem por isso dormira em paz. Sua consciência o condenava pela reação de valentia. Podia ter fugido, podia ter pago os 500 cruzeiros, podia ter feito qualquer coisa que poupasse a vida do Zé. O ódio gerara mais ódio e Genésio contara, depois, com o apoio dos amigos e parentes do Zé para tentar matá-lo. Escolhera deixar a cidade, migrar para o sul para poder criar seus filhos em paz.

Agora o destino se apresentava diante dele, nas mãos daquele carrasco com os olhos iguais aos do Zé. Seu filho havia crescido e viera cobrar a morte do pai. João estava pronto para pagar sua dívida.
Mas aquela visão não era a que o filho esperava encontrar. Toda sua infância imaginara um demônio, o assassino sanguinário que destruíra sua vida e de seus irmãos. A cada surra que levava do padrasto sentia ódio pelo homem que matara seu pai. O marido de sua mãe privilegiava os próprios filhos e desprezava os rebentos da mulher com o falecido José. O filho sofria e nutria um profundo desprezo pelo padrasto, aliviando a dor com a certeza de que um dia mataria o assassino de seu pai, um sujeito que, diziam, fizera fortuna no sul.

O que via ali, diante de si, era um homem velho, gordo, parado em frente a uma casa humilde. Esperara por ele o dia todo e percebera o semblante cansado de quem trabalhara uma longa jornada, tomando ônibus lotado para chegar à casinha na periferia.

O rapaz casara e constituíra família. Tinha seu próprio bar e trabalhara muito para sustentar os filhos e juntar o dinheiro da passagem para estar ali naquele momento. Toda a sua vida levara com a certeza de que tinha um encontro marcado com o assassino de seu pai. Nesse dia destruiria a própria vida, acabando com a do maldito. Passaria o resto da vida na prisão.

Toda essa certeza se dissipou no momento em que deparou com aquele homem parado, desarmado, peito aberto diante de si. Fitou seus olhos e viu o próprio pai. Não era o mal encarnado, mas o fio de sua própria história que finalmente reencontrava. Tudo o que era devia àquele homem. Por sua causa sobreviveu, suportou todas as agruras da vida. Sem saber, aquele velho homem fora seu pai, muito mais que o padrasto que lhe cobrara um preço alto pelas migalhas que o alimentaram. João se parecia muito mais com a imagem que tinha de seu pai em suas memórias de infância. Eram amigos, havia esquecido. Se o matasse estaria tomando a arma que lhe tirou o pai e condenando os próprios filhos a um futuro incerto, uma vingança infinita. Os filhos de João poderiam se vingar dele. Depois os seus filhos seriam criados por outro homem, quem sabe um idiota igual ao padrasto e, quando crescessem, vingariam sua morte, num ciclo sem fim. Não, o homem que odiara a vida toda estava dentro de sua cabeça e não diante daquele portão. O inimigo imaginário o mantivera vivo, forte e alerta.

Naquele momento decidiu: a vingança não era necessária. Tudo terminava ali. A vida seguiria seu curso. Caminhou até a outra esquina e se foi, dando uma última olhada para o homem no portão, que o fitava sem entender o que se passava em sua mente.
Jocelino Freitas
Enviado por Jocelino Freitas em 18/06/2011
Reeditado em 19/06/2011
Código do texto: T3041949